Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal do Porto
É com preocupação que assistimos à intenção de "não suspender o projeto para a Avenida da Ponte", desta vez assinada pelo Arq. Álvaro Siza Vieira, ao que parece pela terceira vez. Se, à partida, pode impressionar ver um mestre da arquitetura retomar este tema, torna-se essencial colocarmo-nos a si — e à autarquia — perguntas difíceis sobre o seu real impacto para a cidade, os seus residentes e o espaço público histórico.
A Av. Dom Afonso Henriques, mais conhecida como Avenida da Ponte, ferida urbana de longa data no centro histórico do Porto, já foi imaginada por várias gerações: de Fernando Távora a Siza Vieira, passando por muitos outros arquitetos nos séculos XX e XXI. As demolições da década de 40 deixaram um vazio físico, mas também simbólico, e a consequente “reconstrução” desse vazio exige mais do que um nome que fica bem atribuir ao projeto.
A verdade é simples e incontornável: isto não se resolve apenas com Arquitetura. Repetir velhas fórmulas, agora com assinatura, não garante por si uma visão urbana verdadeiramente regeneradora.
A Avenida da Ponte é um problema que exige discussão interdisciplinar, convocando especialistas de urbanismo, mobilidade, geografia urbana, património, reabilitação e restauro urbano. No passado, este território não foi tratado apenas por arquitetos — o problema é que só estes tiveram holofotes, porque os media privilegiam maquetas e renders, ignorando a reflexão teórica e estrutural.
Por isso, julgamos óbvio que o projeto de Álvaro Siza Vieira não é suficiente para aquele local, nem resolve a ferida profunda que atravessa a cidade medieval.
Segundo o projeto recentemente divulgado, o arquiteto propõe a construção de cerca de 40 habitações, juntamente com edifícios para serviços culturais, um grande jardim, praças e dois miradouros.
À primeira vista, poderíamos celebrar habitação e zonas verdes — mas a profundidade desta proposta deixa-nos reticentes, por várias razões:
– Habitação limitada, simbólica ou insuficiente
O número de fogos previsto é manifestamente reduzido para o potencial real deste território tão central. Esta área permitiria uma densidade bem maior, combinando habitação, serviços e espaço público vivo.
Além disso, há incerteza sobre o tipo de habitação: será social? pública? acessível? Será decidido pelo futuro executivo — não por agora.
A escala reduzida compromete a possibilidade de revitalizar a zona como um bairro vivo, em vez de uma mera fachada turística.
– Estacionamento para viaturas externas
A criação de 39 lugares de estacionamento de duração limitada ao longo da Avenida retira espaço ao peão e incentiva o automóvel a ocupar ainda mais o centro histórico.
Numa era em que cidades de referência reduzem tráfego e devolvem espaço ao peão, este plano faz precisamente o contrário.
– Espaço público pensado para “olhar”, não para viver
O grande jardim proposto corre o risco de se tornar uma moldura paisagística elegante, mas vazia — um postal urbano para turistas.
Já houve propostas mais ambiciosas, com praças estruturadas, zonas de jogo, bancos e espaços de convívio — elementos ausentes nesta versão.
– A torre-miradouro como símbolo de espetáculo, não de comunidade
A torre de 4 pisos, junto à estação de metro, parece existir sobretudo para “oferecer vistas” já disponíveis noutros lugares — ao mesmo tempo que bloqueia vistas históricas para a Sé e para S. Bento.
Cria-se assim uma visão cénica, quase turística, subordinando a cidade real a um efeito visual.
– Processo fechado e falta de participação cidadã
É alarmante que um projeto desta importância tenha sido encomendado diretamente a Siza, sem um programa claramente definido ao início, sem concurso público ou debate aberto.
A complexidade e sensibilidade da Avenida da Ponte exigem a participação ativa da comunidade, de especialistas de várias áreas (sociologia, história, geografia), e não a entrega de uma parcela tão significativa da cidade a um autor, por si só. É demasiada autoridade confiada numa única visão, por maior que seja o seu prestígio.
– Potencial conflito com planeamento sustentável
Mais estacionamento, menos densidade habitacional e elementos paisagísticos meramente cénicos revelam um modelo urbano ultrapassado, desalinhado com mobilidade sustentável e com a necessidade de trazer habitantes reais para o centro.
Mas a questão fundamental é outra: queremos sequer manter a Avenida da Ponte?
A Avenida:
nunca devia ter existido como eixo estrutural;
tinha função provisória (já cumprida);
perdeu muita da sua utilidade inicial após o fim do tráfego automóvel no tabuleiro superior da Ponte D. Luís;
destruiu tecido urbano medieval;
continua a fragmentar a Sé.
Está na hora de considerar seriamente o fim — puro e simples — desta avenida (no mínimo o seu protagonismo), abrindo caminho ao restauro das ruas históricas e à recomposição do bairro destruído.
Por isso, defendemos a abertura de um verdadeiro concurso de ideias — não apenas para arquitetos.
Um concurso interdisciplinar deve permitir:
considerar a eliminação da avenida, não apenas a sua “reabilitação”;
reconstituir a Rua do Corpo da Guarda, Rua de S. Sebastião, Pelames e Bainharia, reforçando os percursos pedonais históricos;
devolver a Praça Almeida Garrett e a Praça da Liberdade ao seu caráter original;
privilegiar o peão e limitar fortemente o automóvel;
integrar mobilidade pública e ligações rápidas à periferia;
ponderar um parque de estacionamento oculto e exclusivo para residentes;
recompor o urbanismo da Sé e do Corpo da Guarda com base em documentação histórica;
criar um verdadeiro centro cívico na Baixa, contínuo e pedonal.
Não rejeitamos todas as ideias de Siza Vieira — é importante valorizar habitação, espaços verdes e intervenções sensíveis.
Mas não podemos aceitar este projeto como inevitável apenas porque tem nome de prestígio. O Porto merece mais: merece visão, ambição e participação cidadã.
Por isso, sugerimos:
Abertura imediata de um processo de participação pública real;
Concurso de ideias multidisciplinar que não se limite à arquitetura;
Alternativas que privilegiem o peão, mobilidade sustentável e densidade habitacional responsável;
A coragem de considerar soluções estruturais e não remendos estéticos;
A possibilidade real de reconstruir o coração histórico ferido da cidade.
O futuro daquela avenida — da “ferida urbana” — ainda não está escrito.
Se reabrirmos a discussão com coragem e ambição, podemos desenhar um futuro que cure, mais do que remendar.
Na expectativa de esclarecimento, apresentamos os melhores cumprimentos,