segunda-feira, 5 de junho de 2017

A propósito do Teatro de S. João

Entre os belos serviços prestados á cidade do Porto pelo seu antigo corregedor, Francisco de Almada e Mendonça, tem distincto logar a fundação do teatro de S. João. Foi elle quem promoveu o construir-se uma sociedade de capitalistas para se edificar o teatro. Deu-se-lhe aquelle nome em honra do principe D. João que regia o reino no impedimento da Rainha D. Maria I. Foi encarregado do risco o italiano Vicente Manzoneschi, que fôra chamado a Lisboa, , por Sebastião da Cruz Sobral para pintar o scenario do teatro da Rua dos Condes. Parece que era bom scenographo; mas com certeza máu archirtecto. O que havia de bom no teatro de S. João fôra copiado do de S. Carlos, de Lisboa. A fachada era péssima. Faltava-lhe salão d’entrada . A ornamentação da sala tinha sido melhorada, mas estava ainda muito longe de ser boa. O primeiro panno de bôcca do teatro de S. João foi pintado pelo celebre Domingos Antonio de Sequeira. O teatro foi inaugurado a 13 de Maio de 1798 com a comedia A Vivandeira. Apezar de todos os defeitos, o teatro de S. João era ainda o melhor do Porto. Todos os anos, durante tres mezes era explorado por companhias lyricas. Na noite de 11 para 12 de Abril de 1908 um pavoroso incendio, de que se não sabe a causa, destruiu em poucas horas o teatro de S. João. Pensa-se em reconstruil-o, ou edifical-o n’outro local. Por ocasião do incendio, n’um jornal do Porto, o ilustre escriptor Firmino Pereira, abalisado critico e grande conhecedor de assumptos theatraes publicou um excelente artigo, de que extrahimos com sua auctorisação os seguintes trechos:
“Com a construção do teatro de São Carlos (1703) e a renovação do velho e encardido barracão do Salitre, o gosto pelas representações scenicas propagou-se ao Porto. Em Lisboa, as seducções da Zamperini, que tanta asneira provocaram, deram logar á construção do teatro de São Carlos. No Porto, não tendo brilhado astro dde  tão intensa luz, foi bastante o esforço de um homem – o corregedor Almada e Mendonça. Em 1794, tendo decidido construir um teatro, segundo os modelos então adoptados, para o que escolheu um terreno pertencente á antiga Cortina do Muro da Cidade, entre a viella dos Entrevados e a viella do Captivo, submeteu ao governo a respectiva planta, que o ministro José de Seabra, prontamente devolveu aprovada (aviso régio de 9 de outubro de 1794), isentando o terreno de qualquer fôro ou outra contribuição que se pretenda impor. Almada tratou em seguida de organizar uma sociedade por meio de acções, dirigindo uma circular aos capitalistas e negociantes da cidade, na qual reclamava a sua cooperação para a edificação dessa espécie de escola, mais útil para a correcção dos vícios e desordens pela vivacidade com que na Tragedia se vêem  punidos os crimes dos superiores, que julgaram talvez assim uns e outros a corrigirem-se a si próprios…” (Circular  dirigida aos cidadãos portuenses).
O terreno que era particular custou, com a expropriação de cinco casas, réis 6:276$320. Com o capital subscripto principiaram as obras em Abril de 1796 , mas chegado que foi o dezembro de 1797, apenas se havia liquidado a somma de réis 31:300$000, equivalente a 313 acções. Fez-se então nova convocação (29 de dezembro), que produziu 22:650$000, e com esta somma conclui-se o edifício, que foi inaugurado a 13 de maio de 1798, dia dos anos do principe D. João (depois D. João VI), com a comedia A Vivandeira.. A administração do teatro ficou a cargo da correição e provedoria da cidade até 1805 , em que os accionistas nomearam uma administração, que se conservou até 1825, dependente, porem, da autoridade que exercia a policia da cidade. Neste anno, sendo governador das justiças o Dr. Felippe Ferreira de Araujo e Castro, foi o teatro entregue á direcção puramente particular dos accionistas. Foi a 8 de outubro que a assembleia geral, convocada por ordem  da autoridade nomeou os primeiros gerentes, que foram Antonio Maya, José Joaquim Vaz de Guimarães, Manoel Joaquim de Sousa, José Ribeiro Braga e Antonio Joaquim da Ciosta Carvalho. O teatro foi construído segundo o risco do architecto italiano Vicente Mansoneschi, architecto e pintor de Roma, que se achava em Lisboa ao serviço do teatro de S. Carlos. Diz um chronista do tempo que esse artista examinou o sitio e fez para este um modelo de pão, o qual mereceu a geral aprovação”. Há um detalhe curioso na construção: a cornija que ficou em madeira (páo Brazil), assim se conservou sempre. Muita gente duvidava que tal sucedesse. Com o incendio que acabava de devorar o edifício, á evidencia se reconheceu que, ficando a cornija por completar, não se pensou mais em concluil-a, apesar das sucessivas reparações que o teatro sofreu desde que foi aberto ao publico. As decorações internas foram executadas por artistas uns do Porto e outros contratados em Lisboa, nesse tempo abarrotado de pintores e scenographos, muitos dos quaes, contratados já no reinado de D. José, por cá se deixaram ficar, creando família. O panno de bocca, devido ao pincel de Sequeira, foi em 1821 substituido por outro, executado pelo pintor hespanhol João Rodrigues. Era uma tela muito complicada, representando Apollo, conduzindo o Porto á assembleia das Musas. Nella se viam o Douro, Clio, Euterpe, Thalia, Melpomene, Therpsichore, Calliope, Urania, a Pintura, a Esculptura, etc. No teatro de S. João, antes da opera lyrica, funcionavam companhias de declamação.
Desde a sua abertura, nunca fechou, nem mesmo no tempo do cerco. Desde 1827 a 1835, as receitas foram de 10:290$310 e as despezas  de 9:505$970. Isto prova que, durante a quadra angustiosa do terror absolutista, a população não deixou de frequentar o teatro, onde a companhia do Grillo Coxo representava o reportório da época, Pedro Grande ou os Falsos mendigos, Os Sete Infantes de Lara, O Rachador escossez, etc. Em 1820, foram celebres as recitas que lá se deram com os dramas alegóricos, celebrando a victoria da revolução liberal. Em outubro d’aquelle anno representou-se a composição do árcade Bingre, A Revolução de 24 de Agosto de 1820, feita no Porto. Representaram-se também as farças, os entremezes, as burletas do velho reportório, que o empresário e ensaiador João Manuel punha em scena o melhor que podia. Mas, o teatro, ahi por 1850 era tão mau, que um critico escreveu que seria mais decoroso para a segunda cidade do reino não ter teatro, do que represental-o  de tal jaez. (O Theatronº 1, de 19 de maio de 1850). Todos os géneros foram ali exhibidos, desde o trágico ao picaro.  No palco, hoje destruído, do lindo teatro do largo da Batalha, onde representaram a Emília das Neves, a Ristori, o Salvini, o Mayeroni, exhibiram-se uns fantoches, e trabalhou a funambula Zee. Mas, o período brilhante, pitoresco, anecdotico, movimentado, cuja historia esta por fazer, é o da época lyrica, com as suas cantoras, os seus apaixonados, os seus romances, as suas turbulências, que tanto deram que falar pelo seu escândalo e pelo seu ruido, desde as ameaças do Marquez de Niza, defendendo a cantora Jeanne Olivier, pateada pelo publico, ate aos tumultos provocados pelo Eurico, passando pelos episódios galantes dos adoradores da Giordano e da Ponti, e pelos enthusiasmos da plateia nos bons tempos das Marchizios, da Rossi  Caccia, da Valpini, da Dabedelhe, da Ortolani, da Passerini, da Ferni, da Gargano, de tantas outras, que profundamente impressionaram e alvoroçaram o cérebro e o coração dos portuenses. D’esses tempos joviaes e ardentes restava, como recordação saudosa, a linda sala onde tantos olhos choraram e tantos corações padeceram… Hohe, nem isso já resta. Uma chama que se alarga, e n’um instante tudo finda na completa ruina. O lindo edifício, que há mais de um seculo constituía o ponto de reunião da sociedade escolhida, tão rijo e como de aço na sua solida architectura, dentro de duas horas era um montão de destroços.  Houve quem ao contemplal-os, chorasse. É que a essa casa ligam-se tantas tradições e tantas lembranças, que não é sem uma dor d’alma, uma grande, aguda e torturante dôr, que se vêem desaparecer, na estupidez de uma catástrofe, as coisas que nos recordam a mocidade, as ilusões, os sonhos azues, as paixões, as angustias, os risos da quadra jovial e romântica da vida, que passou para nunca mais voltar. O teatro de S. João deixa imensas saudades. É como um  velho conhecimento, um amigo dedicado de outros tempos, que a gente visse morrer. Com elle finda também parte da nossa existencia, a mais bella, a mais suave, a mais linda, a idade em que se não pensa, porque só se vive na fantasia e no sonho. Faz tanta pena vel-o desaparecer! Nada se sabe ainda acerca do modo como se originou o incendio. Em a noite de sexta-feira, 10, tinha havido ali uma soirée literário-musical em beneficio de uma associação académica, e no domingo devia realizar-se , no salão nobre do teatro, um concerto dos discípulos e discípulas do maestro Roncagli. Já para la havia sido transportado um magnifico pianno de cauda Bechstein, do valor de 640$000 réis, cedido pela casa Mello Abreu e que foi inteiramente damnificado pelo fogo. Na tarde de sabbado o fiscal estivera no teatro, nada encontrando de anormal. O que é certo é que o fogo irrompia ahi pela meia noite. Há duas hypotheses – ou pota de cigarro deixada por alguém ao  abandono no palco, ou contacto entre fios electricos, que não tivessem sido desligados depois do espectaculo dos estudantes. Será difícil apurar-se; no entanto a policia judiciaria procede a averiguações. O edifício do teatro, mobiliário e archivo estavam seguros em  55 contos, divididos pelas seguintes companhias; na Segurança , 20 contos; 20, na Confiança Portuense; 10, na Tagus e 5 na Urbana Portuense. O scenario, mobiliário e partituras, pertencentes ao empresário sr. Luiz Faria Guimarães, estavam seguros por 6 contos, na Garantia.
No emtanto, o prejuízo sofrido por este deve ser mais. O sr. Luiz Faria, que terminava este anno  o seu arrendamento do teatro, havia alugado em Italia, na recente temporada lyrica, o scenario para a opera Madame Butterfly, de Puccini, que se dispunha a enviar para a Italia, quando o incendio sobreveio e o devorou. O proprietário do bufete do teatro era o sr. José Joaquim Gomes Duarte, da Confeitaria Bragantina, da rua de Santa Catharina. Este nada tinha do que alli estava  no seguro. O teatro de S. João pertencia há alguns anos a uma parceria composta pelos Srs. João Baptista de Lima Junior, Armando Vieira de Castro, Thomaz Martins Ramos Guimarães,  Dr. Leopoldo Mourão e José Ferreira Guimarães, os quaes já se reuniram, resolvendo não reedificar o teatro, mas auxiliar qualquer empresa que para esse fim se constitua, entrando eles com os valores que lhes pertencem.
(Diccionario do Theatro Portuguez, de Sousa Bastos – Lisboa-1908)





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